Um Espetáculo à Parte

A cultura hindu apresenta uma entidade denominada Shiva, um deus dançarino (dentre outros muitos atributos). É interessante destacar esse aspecto dançarino da divindade, pois a relação de Deus com a criação é análoga a de um dançarino com a dança e não, por exemplo, a de um pintor com uma pintura ou de um escultor com sua escultura. Ao terminar a pintura ou a escultura, a obra de seu criador estará lá, num estado mais permanente e estático. Já com o dançarino é diferente: ao parar de dançar, a sua dança também pára. A dança e o dançarino se confundem um no outro num equilíbrio e numa manifestação contínua e dinâmica. É assim a relação de Deus com a criação: uma criação constante e impermanente, em eterno equilíbrio dinâmico. Dançar sem um modo previamente definido, ao contrário, dançar totalmente livre de padrões e obrigações (e a dança que acompanha o trance é assim…) é experienciar em profundidade nosso estado divino. A vida é vista por muitos como uma luta pela sobrevivência.

É um exercício e a própria vivência do e para o equilíbrio harmônico do universo. Dançando sem padrões, sem amarras, as pessoas têm a oportunidade de catalisar e liberar harmonicamente consigo, com o meio e com os seus semelhantes suas mazelas mais profundas. Dançar em transe profundo, individual ou coletivo, é uma das formas mais saudáveis, proveitosas e positivas de se liberar, por exemplo, sentimentos como tristeza, desalento ou desespero. É uma manifestação que se torna em dança e choro ao mesmo tempo, 

voltando ao silêncio interno, novamente ao choro, então ao riso e por muitas outras manifestações dos sentimentos internos, até que a pessoa se sinta livre dos fardos e pesos que a levaram aos estados deprimidos do humor.

Em determinados momentos no miolo da pista de dança é de se admirar como tanta gente, de uma única vez, harmonicamente, consegue descarregar tanta raiva ao mesmo tempo. 

São momentos nos quais a pista, o som e as pessoas estão “bombando”, muito, muito, muito animadas e intensas mesmo. O fato mais marcante nesses momentos em específico é que apesar de toda a energia, de todos os saltos, murros e chutes ao ar, bem como das firmes e intensas batidas de pés no chão, as pessoas não tocam ou mesmo esbarram umas nas outras em momento algum. A consciência sobre os espaços individuais e os campos energéticos de cada um é absoluta. Nesses momentos, quem está mais letárgico ou cansado não fica nem mesmo perto dessa área da pista, não por medo ou desarmonia, muito pelo contrário, mas simplesmente porque não consegue se quer chegar perto em decorrência da diferença de potencial energético. É facilmente perceptível saber quem já é um tranceiro antigo e quem está começando nessa arte em decorrência de como a pessoa dança de modo solto ou não. A medida em que uma pessoa vai indo aos festivais e se entregando mais e mais à dança, cada vez mais ela vai soltando o corpo e os movimentos naturais, diminuindo a intervenção da mente sobre seus movimentos. Em determinados momentos, a entrega é absoluta, a partir de então, o corpo move-se totalmente a partir de impulsos naturais, a mente para e há um completo estado de êxtase e transe. Trance é dançar na chuva, dançar de noite, dançar na terra, de pés no chão, numa verdadeira maratona de dança, 

dentro da qual não há numa disputa, não há perdedores, mas apenas ganhadores, pois o que cada um ganha é íntimo e pessoal, de si para si e consigo. Intransferível. 

No terceiro filme da série “Matrix” (*) há uma referência muito forte em relação à dança: quando Zion está na véspera de ser invadida, toda a população se entrega durante à noite para um ritual com características xamânicas embalado pela música eletrônica. É um paralelo e uma referência à união dos grupos em torno de um poderoso elo com envolvimentos ancestrais. (*) que contempla toda uma base filosófica apresenta por diversas tradições religiosas numa linguagem moderna – veja o  texto com a análise do 1º filme da série.

Trecho de “A Loucura Cura”, de Guillermo Borja”:

“A dança propriamente tem muitos conteúdos psicológicos. Dançar em uma sessão de grupo é muito importante. Aparentemente é fácil, mas para o ser humano é muito difícil ser espontâneo e, quando tenta sê-lo, fica com cara de inteligente e de bobo, quer ser perfeccionista, educado e correto, mas nada consegue além de expressar sua repressão e sua rigidez. A espontaneidade não se limita a ritmos preestabelecidos.

Na dança pode-se trabalhar com o contato, a confiança, a capacidade de deixar-se levar e de guiar, pode-se trabalhar com a ternura. Um disc-jóquei de sucesso é um musicoterapeuta […]. Manobra os clientes como ele quer. Faz com que fiquem desenfreados, desinibidos, soltos, acabando por leva-los à ternura, à aproximação, ao contato interpessoal. Em uma boa festa, um bom disc-jóquei é aquele que pode fazer aflorar todos os elementos que agradam aos seres humanos”


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